janeiro 07, 2016

A vingança de D. Pedro



"Os soldados, apavorados, não sabiam que fazer, nem
como fazer. Olhavam-se atônitos e indecisos; mas o
rei ordenava imperioso. Então, despiram o Coelho e o
Gonçalves, pondo-os nus da cinta para cima.
Derrubaram-nos. Já infernais golpes de faca
dilaceraram Pero Coelho, quando êste, soerguendose
arquejante, num desafôgo de incomportável dor,
com a mão esquerda crispada sôbre o peito, como a
arreganhar as próprias carnes, rouquejou para o
algoz, com a bôca escancarada, os olhos enormes de
aflição e de desespero, e toda a sua nobre alma
repleta de infinito orgulho fidalgo ? rouquejou:
Vilão, procura bem, que hás de encontrar aqui
dentro, um coração, forte como o de um toiro e lial
como de um cavalo!
Pouco depois, por entre ralas de aspérrimo estertor,
expirou. Ao lado, de bruços, o Gonçalves gemia
agonizante.
E a obra dos carrascos continuou à machadada, à
lançada, grosseiramente, com pancadas incertas na
tábua do peito e nas costas (pancadas que soavam
cavas), com golpes errados, umas vezes nas costelas,
outras no esterno, espetando as pontas das lanças
como alavancas, fazendo estalar os ossos e soltar o
sangue a jorros, por entre os gritos da multidão e as
vozes de comando do rei, que assistia, ensinando os
soldados; e lá conseguiram, por fim, a um, esfacelarse
o tórax, a outro, arrancar-lhe a espádua e pôr a
descoberto os corações. Os homens tinham as testas
luzentes de suor, as caras borrifadas de sangue, e as
mãos e os braços, remangados até os cotovelos, tão
rubros como se os tivessem metidos num tanque de
vermelhão. Os corpos dos fidalgos jaziam em poças
de sangue que empapava os cabelos e as roupas,
tinham os troncos rechaçados, e os olhos,
horrivelmente abertos de agonia, olhavam parados
para o infinito!"


Fonte: FIGUEIREDO, Antero de. O Grande Desvayro. Lisboa: 4.ª
edição, Livrarias Aillaud e Bertrand. 1916, pp. 137-139.