"Supplicio da Marqueza de Tavora"
«A aurora do dia 13 de janeiro de 1759 alvorejava uma luz azulada do eclipse d’aquelle dia por entre castellos pardacentos de nuvens esfumaradas, que a espaços saraivavam bategas de aguaceiros glaciaes. O cadafalso construido durante a noite, estava humido. As rodas e as aspas dos tormentos gottejavam sobre o pavimento de pinho. Ás vezes rajadas de vento do mar zuniam por entre as cruzes das aspas e sacudiam ligeiramente os postes. Uns homens que bebiam aguardente e tiritavam, cobriam com encerados urna falua carregada de lenha e barricas de alcateia, atracada ao caes defronte do tablado. Ás 6 horas e 42 minutos ainda mal se entrevia a facha escura com umas scintillações de espadas nuas, que se avisinhava do cadafalso. Era um esquadrão de dragões. O patear cadente dos cavallos fazia um ruído cavo na terra empapada pela chuva. Atraz do esquadrão seguiam os ministros criminaes, a cavallo, uns com as togas, outros de capa e volta, e o corregedor da côrte com grande magestade pavorosa. Depois urna caixa negra que se movia vagarosamente entre dois padres. Era a cadeirinha da Marqueza de Tavora, D. Leonor. Alas de tropa ladeavam o prestito, e á volta do tablado postaram-se os juizes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham chofrar espumas no parapeito da caes. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A marqueza apeou da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de 50 minutos. Entretanto rnartellava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se prégos necessarios á segurança dos postes, aparafuzavam-se as roscas das rodas. Recebida a absolvição. a padecente subiu, entre os dois padres, a escada, na sua natural attitude altiva, direita com os olhos fitos no espectaculo dos tormentos. Trajava de setim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e n’um laço dos cabellos, envolta em uma capa alvadia roçagante. Assim tinha sido presa um mez antes. Nunca lhe tinham consentido que mudasse camiza nem lenço do pescoço. Receberam-a tres algozes no topo da escada, e mandaram-a fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. Depois mostraram-lhe um por um os instrumentos das execuções, e explicaram-lhe por miudo como haviam de morrer seu marido, seus filhos, e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o masso de ferro que devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as thesouras ou aspas em que se haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostravam, e o modo como ella repuchava e estrangulava ao desandar do arrôcho. A marqueza então succumbiu, chorou muito anciada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a capa, e mandou-a sentar n’um banco de pinho, no centro do cadafalso, sobre a capa que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ella sentou-se. Tinha as mãos amarradas, e não podia compôr o vestido que cahira mal. Ergueu-se, e com um movimento do pé consertou a orla da saia. O algoz vendou-a; e ao pôr-lhe a mão no pescoço, - não me descomponhas - disse ella, e inclinou a cabeça que lhe foi decepada pela nuca, de um só golpe.»
Fonte: Extraído de Fac-Símile do Panfleto publicado na Revista "História" Nº49 - Novembro de 1982