19 de FEVEREIRO de 2015
Passam hoje 18 anos sobre a morte de Rómulo Vasco da Gama Carvalho que usou também o pseudónimo de António Gedeão.
Reproduzo aqui um excerto do capítulo "Adeus" e um excerto do capítulo "Curia" do meu livro Rómulo de Carvalho/António Gedeão - Biografia.
A Escritora: Cristina Carvalho (filha de Rómulo de Carvalho)
ADEUS (excerto)
(...)
A capela mortuária da Basílica da Estrela foi a última sala de visitas antes de o seu corpo recolher a todas as sombras.
Por aqui passaram centenas e centenas de pessoas num último reconhecimento, numa definitiva despedida. Amigos, antigos alunos, colegas, admiradores, personalidades de todas as áreas culturais e científicas, membros do governo, o Presidente da República, a porteira do prédio onde morou, a empregada de sua casa, o senhor Tavares da mercearia e ainda toda a sua família. Foram dois dias inteiros de cumprimentos enlutados, de delicadezas, de atenções, de flores e de beijos.
Não houve missa. Rómulo era agnóstico. Costumava dizer «Não tenho competência para saber seja o que seja a respeito de Deus. Nessa matéria, sou um incompetente.»
Rómulo sempre se desligou das conversas sobre a religião. Não que fosse hostil às crenças de cada um. Para si tratava-se de conversas sem fim e sem respostas possíveis. Por outro lado, nas suas observações julgava encontrar uma ordem natural nas coisas. Verificava-a na disposição das folhas numa planta, nas proporções das distâncias e dos tamanhos dos ramos de uma árvore, na perfeição de uma espiral na concha de um caracol. Em tudo procurou verificar a existência e a razão de ser de uma ordem natural das coisas. Na vida e na morte.
Ao fundo da rua Saraiva de Carvalho, em Campo D’Ourique, o imponente e muito soalheiro cemitério dos Prazeres.
O cortejo fúnebre deslizou em silêncio pelo corredor da capela mortuária da igreja. Só os passos das pessoas se podiam ouvir nas lajes do chão. Nada mais. Por essa altura, seriam dez da manhã. Cá fora, no amplo e luminoso largo da Estrela e por toda a cidade, em todo o país, em todo o nosso mundo o dia estava magnífico. Uma multidão aguardava a chegada do caixão já fechado. Muitos jornalistas, cronistas, câmaras de televisão, microfones da rádio, de gravadores, tudo a postos para cobrir mais um acontecimento na cidade de Lisboa. Desta vez um funeral. E no meio de muitos encontrões, de acenos, com-licença, faz favor, uma ou outra lágrima escondida e uma ruga de tristeza, nesse meio, o caixão desapareceu lá por dentro do automóvel funerário. À frente, a família. Atrás, inteiramente coberto por enormes coroas de flores e fitas de seda com dizeres de saudades e carinhos, a urna.
Ficou decidido que o carro passaria por várias ruas até chegar à avenida Pedro Álvares Cabral. A intenção era uma breve paragem diante do liceu Pedro Nunes, num adeus para sempre aquele edifício onde lecionou durante dezassete anos. Assim se cumpriu. Depois, todo o percurso foi feito a pé. A subida da rua Domingos Sequeira em marcha muito lenta e de seguida a rua Saraiva de Carvalho, sempre em frente com destino à vista. Ao longo deste percurso entristecido, acompanhado por centenas de pessoas, umas que já iam no cortejo, outras que se lhe juntavam pelo caminho, muitas pessoas paravam nos passeios e sussurrava-se, a palavra era passada, os rostos definitivamente curiosos, um aceno, um adeus, uma lembrança!
No final, foi difícil a entrada no largo portão do cemitério. A multidão era imensa. Devagar, muito devagar o carro parou num certo sítio já designado, cova aberta, chão molhado, tudo a postos, o final do fim.
Algumas vezes que calhou estarmos os dois juntos em situação de funerais ou quando passávamos por algum cemitério, ele dizia sempre sem sombra de sarcasmo «Aqui é que se deve estar bem!»
Ali ficou no fundo da terra, num local elevado donde se avista o rio que, nessa manhã brilhante vibrava de luz e cores.
Ao longe, talvez já no largo em frente, rua acima ou rua abaixo, talvez num eco de todos os ecos, a toada do poema “Pedra Filosofal” irradiava, cantada de boca em boca em mais um glorioso dia do mundo.
CURIA (excerto)
(...) Havia uma estrada de terra que partia da Pensão Lourenço – local escolhido por ele e sempre o mesmo ano após ano - que atravessava todo o parque e que rodeava o lago. O meu pai dizia sempre que me ia mostrar coisas nunca vistas: cabelos de árvores, animais extravagantes, lagostins da terra, pássaros com voz humana e ao longe, se parássemos a escutar poderíamos até ouvir o rei Lumumba que vivia lá na África mas que tinha uma voz tão poderosa, tão poderosa que chegava até aqui ao lago plano e metálico do parque da Curia. E assim parávamos e assim escutávamos, eu e ele, olhando-nos nos olhos, incrédulos, eu por uma razão, ele por outra. A voz profunda de Lumumba ouvia-se distintamente no meio do lago da Curia quando ao fim da tarde, aqui neste canto ignorado do planeta, os jovens casais de namorados pedalavam nas gaivotas, entrelaçando as pontas dos dedos das mãos, deixando um rasto de beijos a desenhar amores líquidos.
Assim passei muitos meses de Agosto, eu e o meu pai, a caminhar, a caminhar de mão na mão por infinitos chãos de terra, num sonho de verdes sem fim, atravessando uma linha de pensamento que nos conduziria, incansavelmente, a um espaço secreto e intransponível.
Eu e ele fomos, muitas vezes, um só.
CRISTINA CARVALHO
A fotografia é de Eduardo Gageiro
(...)
A capela mortuária da Basílica da Estrela foi a última sala de visitas antes de o seu corpo recolher a todas as sombras.
Por aqui passaram centenas e centenas de pessoas num último reconhecimento, numa definitiva despedida. Amigos, antigos alunos, colegas, admiradores, personalidades de todas as áreas culturais e científicas, membros do governo, o Presidente da República, a porteira do prédio onde morou, a empregada de sua casa, o senhor Tavares da mercearia e ainda toda a sua família. Foram dois dias inteiros de cumprimentos enlutados, de delicadezas, de atenções, de flores e de beijos.
Não houve missa. Rómulo era agnóstico. Costumava dizer «Não tenho competência para saber seja o que seja a respeito de Deus. Nessa matéria, sou um incompetente.»
Rómulo sempre se desligou das conversas sobre a religião. Não que fosse hostil às crenças de cada um. Para si tratava-se de conversas sem fim e sem respostas possíveis. Por outro lado, nas suas observações julgava encontrar uma ordem natural nas coisas. Verificava-a na disposição das folhas numa planta, nas proporções das distâncias e dos tamanhos dos ramos de uma árvore, na perfeição de uma espiral na concha de um caracol. Em tudo procurou verificar a existência e a razão de ser de uma ordem natural das coisas. Na vida e na morte.
Ao fundo da rua Saraiva de Carvalho, em Campo D’Ourique, o imponente e muito soalheiro cemitério dos Prazeres.
O cortejo fúnebre deslizou em silêncio pelo corredor da capela mortuária da igreja. Só os passos das pessoas se podiam ouvir nas lajes do chão. Nada mais. Por essa altura, seriam dez da manhã. Cá fora, no amplo e luminoso largo da Estrela e por toda a cidade, em todo o país, em todo o nosso mundo o dia estava magnífico. Uma multidão aguardava a chegada do caixão já fechado. Muitos jornalistas, cronistas, câmaras de televisão, microfones da rádio, de gravadores, tudo a postos para cobrir mais um acontecimento na cidade de Lisboa. Desta vez um funeral. E no meio de muitos encontrões, de acenos, com-licença, faz favor, uma ou outra lágrima escondida e uma ruga de tristeza, nesse meio, o caixão desapareceu lá por dentro do automóvel funerário. À frente, a família. Atrás, inteiramente coberto por enormes coroas de flores e fitas de seda com dizeres de saudades e carinhos, a urna.
Ficou decidido que o carro passaria por várias ruas até chegar à avenida Pedro Álvares Cabral. A intenção era uma breve paragem diante do liceu Pedro Nunes, num adeus para sempre aquele edifício onde lecionou durante dezassete anos. Assim se cumpriu. Depois, todo o percurso foi feito a pé. A subida da rua Domingos Sequeira em marcha muito lenta e de seguida a rua Saraiva de Carvalho, sempre em frente com destino à vista. Ao longo deste percurso entristecido, acompanhado por centenas de pessoas, umas que já iam no cortejo, outras que se lhe juntavam pelo caminho, muitas pessoas paravam nos passeios e sussurrava-se, a palavra era passada, os rostos definitivamente curiosos, um aceno, um adeus, uma lembrança!
No final, foi difícil a entrada no largo portão do cemitério. A multidão era imensa. Devagar, muito devagar o carro parou num certo sítio já designado, cova aberta, chão molhado, tudo a postos, o final do fim.
Algumas vezes que calhou estarmos os dois juntos em situação de funerais ou quando passávamos por algum cemitério, ele dizia sempre sem sombra de sarcasmo «Aqui é que se deve estar bem!»
Ali ficou no fundo da terra, num local elevado donde se avista o rio que, nessa manhã brilhante vibrava de luz e cores.
Ao longe, talvez já no largo em frente, rua acima ou rua abaixo, talvez num eco de todos os ecos, a toada do poema “Pedra Filosofal” irradiava, cantada de boca em boca em mais um glorioso dia do mundo.
CURIA (excerto)
(...) Havia uma estrada de terra que partia da Pensão Lourenço – local escolhido por ele e sempre o mesmo ano após ano - que atravessava todo o parque e que rodeava o lago. O meu pai dizia sempre que me ia mostrar coisas nunca vistas: cabelos de árvores, animais extravagantes, lagostins da terra, pássaros com voz humana e ao longe, se parássemos a escutar poderíamos até ouvir o rei Lumumba que vivia lá na África mas que tinha uma voz tão poderosa, tão poderosa que chegava até aqui ao lago plano e metálico do parque da Curia. E assim parávamos e assim escutávamos, eu e ele, olhando-nos nos olhos, incrédulos, eu por uma razão, ele por outra. A voz profunda de Lumumba ouvia-se distintamente no meio do lago da Curia quando ao fim da tarde, aqui neste canto ignorado do planeta, os jovens casais de namorados pedalavam nas gaivotas, entrelaçando as pontas dos dedos das mãos, deixando um rasto de beijos a desenhar amores líquidos.
Assim passei muitos meses de Agosto, eu e o meu pai, a caminhar, a caminhar de mão na mão por infinitos chãos de terra, num sonho de verdes sem fim, atravessando uma linha de pensamento que nos conduziria, incansavelmente, a um espaço secreto e intransponível.
Eu e ele fomos, muitas vezes, um só.
CRISTINA CARVALHO
A fotografia é de Eduardo Gageiro