São histórias para crianças que nos fazem adultos melhores
O urso Puff acompanha Álvaro Magalhães desde os seus 20 anos
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O livro da vida de Álvaro Magalhães tem um urso como
herói e acompanha-o desde os seus pouco mais de 20 anos. É um livro
infantil, dir-se-á, mas o escritor sabe que é ainda mais precioso para
os adultos. Pelo menos para aqueles que, como ele, são capazes de
descobrir em "Puff e os seus amigos", de Alan Alexander Milne, coisas
novas a cada leitura.
"É um verdadeiro clássico. Nunca acaba de dizer o que
tem para dizer", garante Álvaro Magalhães. A obra é de 1926, mas a
primeira tradução terá chegado a Portugal já nos anos 70, diz o
escritor. Hoje, a personagem ser é mais conhecida como Winnie the Pooh.
O urso desmiolado que vive as mais fantásticas
aventuras "sem perder a serenidade feliz" é, no fundo, "um herói
taoísta", diz o também autor de títulos infanto-juvenis, assumindo que
este livro influenciou "não só a minha escrita, mas a minha visão do
mundo".
Apaixonado pelos livros desde muito novo, embora "os
meus pais não lessem", Álvaro Magalhães não hesita em dizer que "é o
acaso" que faz um grande leitor: "Não chega dar livros a uma criança. É
preciso saber transmitir-lhe essa paixão pela leitura, haver alguém, um
dia, que a consiga passar. No meu caso foi um professor".
Um livro não tem de ser útil
Acabadinha de chegar da Feira do Livro Infantil de
Bolonha, de onde trouxe um prémio internacional de ilustração (com o
livro "O meu avô"), Catarina Sobral pergunta a medo: "Só posso falar num
livro"?
Como a escolha é difícil, e há maldades que não se
podem fazer a quem elege o livro como "objeto preferido", ficam dois
títulos na fotografia. "Romance", de Blexbolex, é um deles, e "O dia em
que os lápis desistiram", de Drew Daywalt (com ilustrações de Oliver
Jeffers), é o outro.
Ambos têm o que é preciso para ser um bom livro
infantil, segundo o critério de Catarina. Por "permitirem que as
crianças os explorem e encontrem diferentes formas de os ver, sem
preocupação moral", mas também por terem uma relação texto/imagem
que funciona sem "redundâncias".
Há uma terceira razão: "Um livro tem de ser bom de
pegar, com bom papel e peso adequado". É, no fundo, "um objeto
artístico", remata. "Não tem necessariamente de ser útil ou de ter uma
função." Mesmo que seja para crianças.
Quanto às suas sugestões, "Romance" parte de um jogo
oral, "uma espécie de quem conta um conto...", onde se vão acrescentando
palavras que vão alterando a história. "Começa com uma estrutura
simples - uma imagem mais uma palavra - para evoluir para uma história
muito rica", remata a autora/ilustradora.
Por sua vez, "O dia em que os lápis desistiram" fala
sobre a criatividade e deixa a mensagem de que "não é preciso pintar
sempre com as cores tradicionais ou dentro das linhas". Usa, além disso,
"imenso humor", razões que fazem dele o favorito de Catarina deste ano.
Um livro sem texto
Para sugerir "A árvore", da italiana Iela Mari, André
Letria não recorre propriamente às memórias de infância. "Não me lembro
de livros de histórias que me contassem à noite, antes de dormir", conta
o ilustrador.
Sendo filho de quem é (do escritor José Jorge Letria),
não admira que o habitual fosse o pai inventar as histórias que lhe
narrava. Em matéria de livros, quando os passou a escolher, fugiram-lhe
mais os olhos para a linguagem visual.
As imagens e os livros que lhes dão destaque
"interessam-me pela capacidade de imaginação que transmitem". Não são
histórias fechadas, justifica, mas pontos de partida, que "aguçam a
curiosidade e estimulam a descoberta".
Por isso a sua escolha. Um livro sem texto, da década
de 80 do século passado, editado pela Sá da Costa, quando os álbuns
ilustrados eram ainda uma quase novidade em Portugal, um formato pouco
usual, que teria de esperar vários anos para vingar.
O panorama é hoje diferente, pela mão de pequenas
editoras que estão a apostar neste tipo de livros, "muito desejados
pelos educadores e a que os pais de gerações mais novas estão mais
atentos", considera André Letria.
É o seu próprio caso, como editor da Pato Lógico (um
dos seus livros, "Mar", veio também da Feira de Bolonha com uma menção
honrosa). "Os álbuns ilustrados estão associados ao florescimento dos
ilustradores portugueses, jovens na casa dos 30 anos e até da minha
geração, que tenho 40." Há uma dose de risco neste caminho, mas André
confessa não se preocupar muito com o perfil do leitor para que cria.
"Não penso muito se faço para novos ou para velhos. Interessa-me apenas
fazer os livros da forma que gosto, para que as pessoas depois gostem
deles".
O que não significa não reconhecer no livro infantil
algumas funções em particular, como sejam a de "fazer uma ligação entre
gerações", pela lado da partilha da leitura, e o facto de serem
"instrumentos de trabalho nas escolas".
Desconstruir o mundo
Quando era pequena, Isabel Minhós Martins gostava de
ler coisas que a fizessem rir. Quer dizer, gostava de ler quase tudo e
lia muito, sempre à procura de algo novo. Mas à noite, antes de dormir,
preferia histórias que a adormecessem com um sorriso nos lábios.
Se calhar foi pena não ter descoberto nessa altura o "É
um mundo mágico", de Bill Watterson, mas é um facto que o personagem
Calvin só lhe veio parar às mãos nos anos de 1990, com as tiras do
jornal "Público".
"Apesar de não parecer, o Calvin é um rapaz muito
filosófico. Tem uma forma de desconstruir as coisas que existem à sua
volta e isso é algo útil para os miúdos, para que aprendam a ter um
olhar crítico", diz a autora e também uma das responsáveis pelo
aparecimento da Planeta Tangerina, uma editora que é referência no
segmento infanto-juvenil.
Faz questão de deixar mais duas escolhas: "A árvore
generosa", de Shel Silverstein, e "Contos da Mata dos Medos", de Álvaro
Magalhães, dois livros "especiais" a que vai voltando, apesar de
antigos.
O primeiro é um clássico, de 1964, que conta a história
"intemporal e transversal" da relação de um menino com uma árvore. Ele
cresce sempre a querer dela mais e mais e ela está lá, sempre disponível
"e feliz" por ajudá-lo. "Faz-nos pensar na forma como queremos só para
nós aquilo de que gostamos."
Já "Contos da Mata dos Medos" tem uma inspiração
ecológica e uma linguagem de que Isabel gosta muito. "Pela forma como o
autor escreve e brinca com as palavras", mas também pelo facto de o
livro "fazer muitas perguntas, colocando muita coisa em causa". Não é
tudo: "Tem humor e uma ilustrações maravilhosas muito delicadas, de
Cristina Valadas".
Antes da barra pesada
Não foi possível fotografá-lo, mas é provável que, a
ter acontecido, Miguel Sousa Tavares tivesse ficado com o recorde de
livros ao colo. Porque são muitos os que recorda e faz questão de
destacar. "Entre as minhas melhores recordações de infância e juventude
estão as leituras à noite, antes de adormecer", conta o escritor, autor
de "O Segredo do rio" e "Ismael e Chopin".
Miguel teve "a sorte de ter um pai que só autorizou a
entrada da televisão em casa quando eu tinha uns 15 ou 16 anos", pelo
que durante muito tempo ganharam os livros a qualquer outra forma de
ocupar o tempo.
Os primeiros que se lembra de ter lido, "além dos das
minha mãe [Sophia de Mello Breyner], como é óbvio", foram "o 'Tom
Sawyer', 'As memórias de um burro', a série do 'Grichka, o urso', cujas
edições tinham um cheiro fantástico, o 'D. Quixote' e o 'Moby Dick', em
versão reduzida". Assim mesmo, com o artigo definido atrás, porque o Tom
e o D. Quixote foram amigos que fez para a vida.
"Os cinco" e os livros da Helaine Sanceau sobre os
descobridores portugueses são também dessa época. Mais tarde chegou "o
Tintim, que ainda só havia em francês e que a minha mãe traduzia
enquanto os lia, por vezes com ataques de riso, que nos faziam
desesperar pela tradução daquilo que os originara". E na entrada da
adolescência "começou a 'barra pesada' do assalto à estante dos meus
pais", o início de "toda outra história".