EUGÉNIO DE ANDRADE, in ROSTO PRECÁRIO (6ª ed, Porto, Fund. Eugénio de Andrade, 1995)
O ACTO POÉTICO
O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação.
Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se
exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do
homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma
singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano
atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças,
esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal
coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser
palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde
outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros
nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando
luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o
silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia
da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia
entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.