setembro 22, 2014

Poema de Manuel da Fonseca

Tejo que levas as águas

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes, espantos
De roubos, fomes, terrores,
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amores
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro
Lava palácios, vivendas,
Casebres, bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta e a outros mata
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais
Afoga empenhos, favores,
Vãs glórias, ocas palmas
Leva o poder dos senhores
Que compram corpos e almas
Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas
Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos, corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo.
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.

Manuel da Fonseca

Pintura de António Neves