Mas talvez
nenhuns outros tenham feito mais um homem do que aqueles que leu na infância,
pois se é garantido que um livro não transforma o mundo, certo é também que
pode mudar a vida de um leitor.
A gradual
consciência disto me levou a guardar na estante, como num relicário, os livros
que os meus dias de menino me pousaram no colo. E aqueles outros que o magro
porta-moedas de criança de vez em quando me permitia adquirir, com a
aquiescência dos pais.
Grandes
livros? Longe disso (tirando um ou outro). Mas que poderia eu saber, nessa
época, dos grandes livros que enformavam o mundo? Para o menino que eu era,
grandes eram, sem dúvida, os que lia.
Sapato de Fogo e Sandália de Vento, de Ursula Wölfel, ensinava-me a
alegria de ter um pai que nos leva a conhecer mundo, estrada fora. E que, por
meio de parábolas (ou seja, de palavras), vai dando forma e sentido às comoções
e conquistas, aos medos e enganos com que a vida nos torna o caminho suave ou
pedregoso. Talvez um outro livro, Companheiros
de Spártaco, de um obscuro Eric Houghton, me tenha inoculado a alergia à
injustiça, à exploração do homem pelo homem. Terá sido A Gruta, de Nan Chauncy, a tornar-me para sempre sensível aos
gestos de rebeldia? E os livros de aventuras que li até aos dez anos e que, sem
sair de Portugal, me deram as primeiras imagens da Hungria, da Alemanha, da
Andaluzia, dos Andes, da América do Norte, do Alasca ou da Nova Zelândia? (Lá
ia eu à procura do mapa do mundo.)
Muitos
outros livros, certamente, me fizeram. Mas como não recordar a vez primeira que
li a descrição de abertura de A Menina do
Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, estampada nas páginas do meu
livro de Português do primeiro ano do liceu? Menino que amava a areia e o mar,
os rochedos e os navios, como poderia eu ficar indiferente a essa espécie de
poema em prosa que vinha envolver a praia numa aura de estesia, coisa nunca vista
por mim nem “ouvida” (sim, porque ler, ler por hábito apura também o ouvido
interior, aquele que nos diz se uma frase escrita possui, ou não, a eufonia, a
elegância, a respiração necessárias). Pela primeira vez, o real, o “meu” real
tomava a forma de palavras, isto é, convertia-se em linguagem. E que linguagem.
Linhas de prosa que apetecia ler em voz alta saboreando cada palavra como se na
língua se sentisse o sal da maresia, o granulado da areia, o rumor da água e das
plantas e bichos marinhos. Com A Menina
do Mar aprendi, talvez, sem disso ter ainda consciência, que as palavras
não se limitam a dar nome às coisas, as palavras são, elas próprias, coisas –
como a poesia, lida mais tarde com devoção, viria confirmar.
Depois,
terei entendido que a vida de cada um é uma construção, feita pelo próprio, pelos
outros, pelo vasto mundo, obedecendo a um projeto que em nós se vai esboçando,
ganhando forma. Mostraram-mo as biografias lidas na infância: de Joana d’Arc,
de Mark Twain, de Pasteur, de Daniel Boone, de Abraham Lincoln… Mas também a de
Camões, contada, em cromos de banda desenhada, pelos belos desenhos de Carlos
Alberto Santos e pelo texto de José de Oliveira Cosme.
Por isso, como
não amar os livros, esses companheiros de sempre, na saúde e na doença, até que
a morte nos separe? E como não sublinhar, uma vez mais, o papel essencial do
livro infantil na sempre inacabada construção de um homem?