fevereiro 12, 2014

O que a chuva nos evoca...


Carlos Drummond de Andrade

O poema completo:

CASO PLUVIOSO

A chuva me irritava.
Até que um dia descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria.
E cada pingo de Maria ensopava o meu domingo.
E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
Maria, chuvosíssima criatura!
Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!
Não me chovas, Maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!
Eu lhe dizia em vão - pois que Maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,
que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Pára! E ela chovendo,
poças d’água gelada ia tecendo.
Choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa
e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,
de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.
Os seres mais estranhos se juntando na mesma aquosa pasta
iam clamando contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.
Os navios soçobram.
Continentes já submergem com todos os viventes,
e Maria chovendo.
Eis que a essa altura, delida e fluida
a humana enfibratura,
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! - e ela parou.