Miguel Torga - A Criação do Mundo
LIVRO DE HORAS
 Aqui, diante de mim,
 eu, pecador, me confesso
 de ser assim como sou.
 Me confesso o bom e o mau
 que vão ao leme da nau
 nesta deriva em que vou.
 Me confesso
 possesso
 das virtudes teologais,
 que são três,e dos pecados mortais,
 que são sete,
 quando a terra não repete
 que são mais.
 Me confesso
 o dono das minhas horas.
 O das facadas cegas e raivosas
 e o das ternuras lúcidas e mansas.
 E de ser de qualquer modo andanças
 do mesmo todo.
 Me confesso de ser charco
 e luar de charco, à mistura.
 De ser a corda do arco
 que atira setas acima
 e abaixo da minha altura.
 Me confesso de ser tudo
 que possa nascer em mim.
 De ter raízes no chão
 desta minha condição.
 Me confesso de Abel e de Caim.
 Me confesso de ser homem.
 De ser um anjo caído
 do tal céu que Deus governa;
 de ser um monstro saído
 do buraco mais fundo da caverna.
 Me confesso de ser eu.
 Eu, tal e qual como vim
 para dizer que sou eu
 aqui, diante de mim!
 O Outro Livro de Job, 1956
