março 02, 2014

Nos 168 anos do nascimento de Eça de Queirós

Nos 168 anos do nascimento de Eça de Queirós

Exatamente 168 anos depois do nascimento de Eça de Queirós, estão longe de se encontrarem esgotados os sentidos, os valores, os propósitos críticos  e os impulsos de inovação  que o grande escritor nos legou, numa produção literária  algo acidentada.  Ao longo de cerca de 35 anos de vida literária, Eça  escreveu textos ficcionais (que são o grande eixo identificador da sua obra), que incluem romances, uma novela e contos; escreveu também e de forma regular textos de imprensa, sobretudo crónicas, que na sua esmagadora maioria viram a luz da publicidade em jornais e em revistas de Portugal e do Brasil; redigiu  muitas centenas de cartas de natureza, finalidades e temas muito distintos; esboçou relatos de viagens; colaborou em obras de circunstância,  com destaque para almanaques em que chegou a intervir como responsável principal; por fim, traduziu uma peça de teatro e um romance.
DavidSe quiséssemos destacar uma nota interessante neste conjunto  considerado por grosso, observaríamos algo em que nem sempre se atenta: em vida, Eça publicou um número relativamente escasso de livros (isto se tivermos em conta a sua notoriedade como escritor, já então). Por junto e de sua exclusiva autoria, temos cinco títulos, a saber: O Crime do Padre Amaro (1876 e 1880), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1880), A Relíquia (1887) e Os Maias (1888). O romance epistolar O Mistério da Estrada de Sintra (1870)  surgiu em regime de co-autoria, com Ramalho Ortigão; por sua vez, os dois volumes de  Uma Campanha Alegre. De “As Farpas” (1890-91) aparecem também na esteira da colaboração com o mesmo Ramalho, embora, neste caso, Eça tenha autonomizado e profundamente refundido o que fora a sua participação nos caderninhos d’As Farpas.  Para além disso e olhando agora o ritmo de publicação da ficção não póstuma, verificamos que, em contraste com os intensos anos 70, os anos 90 parecem (enganadoramente, diga-se desde já) estéreis: depois d’Os Maias e em vida, Eça não voltou a fazer sair qualquer outro volume de ficção.
Ao que fica dito devemos desde já juntar o seguinte: praticamente todas as vezes que teve que republicar um dos seus livros, Eça introduziu no texto substanciais alterações. A única exceção é A Relíquia (2ª edição em 1891); mas não  sabemos se com este relato se terá passado o mesmo que aconteceu com a 3ª edição (1887) d’O Primo Basílio, obra cujo texto o escritor não pôde rever – e (quem sabe?) reescrever,  como normalmente fazia, para angústia dos editores… O romance Os Maias, recorde-se, não foi reeditado em vida de Eça (a segunda edição é póstuma, provavelmente de 1903), o que sugere uma espécie de injusto falhanço comercial que atingiu a obra-prima da ficção queirosiana. Resta a conjetura: que texto d’Os Maias teríamos hoje, se Eça o tivesse reeditado?
Situação singular é a d’O Crime do Padre Amaro. Aludo aqui não tanto à sucessão de três versões, num lapso de tempo relativamente curto, entre 1875 e 1880, mas sim aos juízos que Eça fez sobre a primeira versão, inserta na Revista Ocidental. Desse que foi um episódio de discordância e mesmo de conflito agreste entre Eça e o par Antero de Quental-Batalha Reis (responsáveis  pela aventura editorial  que o jovem aprendiz de romancista debalde tentou suspender) resultou um caso curioso: o de um título não autorizado, antes  de concluída a publicação. O que configura uma situação distinta daquela que muitos escritores vivem, quando pretendem abolir da lista das suas obras  alguma ou algumas com que já se não identificam, fazendo-o quase sempre  tempos depois do aparecimento original. No caso de Eça, a desautorização  justifica que se considere essa primeira (e defeituosa) versão como um interessante documento histórico-literário, mas não exatamente como um título do cânone queirosiano.
Mais de um século e meio depois do nascimento do escritor, o cânone da literatura queirosiana deve ser reestruturado e consolidado, à luz de critérios  mais fiáveis e consistentes do que os motivos que presidiram, desde a morte de Eça, a edições erráticas, a títulos infundados e a arrumações às vezes caóticas. A edição crítica que está em curso  segue uma nova configuração do cânone queirosiano, configuração que ela mesma, enquanto projeto editorial,  suscitou.
E assim continuamos a viver e a fruir Eça de Queirós, 168 anos após o seu nascimento.

                                                                                                                                                  Assina: Carlos Reis