Nos 168 anos do nascimento de Eça de Queirós
Exatamente 168 anos depois do nascimento de Eça de Queirós, estão longe de se encontrarem esgotados os sentidos, os valores, os propósitos críticos e os impulsos de inovação que o grande escritor nos legou, numa produção literária algo acidentada. Ao longo de cerca de 35 anos de vida literária, Eça escreveu textos ficcionais (que são o grande eixo identificador da sua obra), que incluem romances, uma novela e contos; escreveu também e de forma regular textos de imprensa, sobretudo crónicas, que na sua esmagadora maioria viram a luz da publicidade em jornais e em revistas de Portugal e do Brasil; redigiu muitas centenas de cartas de natureza, finalidades e temas muito distintos; esboçou relatos de viagens; colaborou em obras de circunstância, com destaque para almanaques em que chegou a intervir como responsável principal; por fim, traduziu uma peça de teatro e um romance.
Se quiséssemos destacar uma nota interessante neste conjunto
considerado por grosso, observaríamos algo em que nem sempre se atenta:
em vida, Eça publicou um número relativamente escasso de livros (isto
se tivermos em conta a sua notoriedade como escritor, já então). Por
junto e de sua exclusiva autoria, temos cinco títulos, a saber: O Crime do Padre Amaro (1876 e 1880), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1880), A Relíquia (1887) e Os Maias (1888). O romance epistolar O Mistério da Estrada de Sintra (1870) surgiu em regime de co-autoria, com Ramalho Ortigão; por sua vez, os dois volumes de Uma Campanha Alegre. De “As Farpas” (1890-91)
aparecem também na esteira da colaboração com o mesmo Ramalho, embora,
neste caso, Eça tenha autonomizado e profundamente refundido o que fora a
sua participação nos caderninhos d’As Farpas. Para além disso e
olhando agora o ritmo de publicação da ficção não póstuma, verificamos
que, em contraste com os intensos anos 70, os anos 90 parecem
(enganadoramente, diga-se desde já) estéreis: depois d’Os Maias e em vida, Eça não voltou a fazer sair qualquer outro volume de ficção.
Ao que fica dito devemos desde já juntar o seguinte: praticamente
todas as vezes que teve que republicar um dos seus livros, Eça
introduziu no texto substanciais alterações. A única exceção é A Relíquia (2ª edição em 1891); mas não sabemos se com este relato se terá passado o mesmo que aconteceu com a 3ª edição (1887) d’O Primo Basílio, obra
cujo texto o escritor não pôde rever – e (quem sabe?) reescrever, como
normalmente fazia, para angústia dos editores… O romance Os Maias, recorde-se,
não foi reeditado em vida de Eça (a segunda edição é póstuma,
provavelmente de 1903), o que sugere uma espécie de injusto falhanço
comercial que atingiu a obra-prima da ficção queirosiana. Resta a
conjetura: que texto d’Os Maias teríamos hoje, se Eça o tivesse reeditado?
Situação singular é a d’O Crime do Padre Amaro. Aludo aqui não
tanto à sucessão de três versões, num lapso de tempo relativamente
curto, entre 1875 e 1880, mas sim aos juízos que Eça fez sobre a
primeira versão, inserta na Revista Ocidental. Desse que foi um
episódio de discordância e mesmo de conflito agreste entre Eça e o par
Antero de Quental-Batalha Reis (responsáveis pela aventura editorial
que o jovem aprendiz de romancista debalde tentou suspender) resultou um
caso curioso: o de um título não autorizado, antes de concluída a
publicação. O que configura uma situação distinta daquela que muitos
escritores vivem, quando pretendem abolir da lista das suas obras
alguma ou algumas com que já se não identificam, fazendo-o quase sempre
tempos depois do aparecimento original. No caso de Eça, a
desautorização justifica que se considere essa primeira (e defeituosa)
versão como um interessante documento histórico-literário, mas não
exatamente como um título do cânone queirosiano.
Mais de um século e meio depois do nascimento do escritor, o cânone
da literatura queirosiana deve ser reestruturado e consolidado, à luz de
critérios mais fiáveis e consistentes do que os motivos que
presidiram, desde a morte de Eça, a edições erráticas, a títulos
infundados e a arrumações às vezes caóticas. A edição crítica que está
em curso segue uma nova configuração do cânone queirosiano,
configuração que ela mesma, enquanto projeto editorial, suscitou.
E assim continuamos a viver e a fruir Eça de Queirós, 168 anos após o seu nascimento.
Assina: Carlos Reis