A
infância e a adolescência de António Nobre foram passadas entre Leça da
Palmeira, onde o pai, antigo emigrado no Brasil, possuía uma quinta, e a Foz do
Douro. Tendo estudado em colégios do Porto, frequentou os principais centros da
boémia portuense, convivendo com figuras literárias como Raul Brandão e Júlio
Brandão e publicando criação poética. Frequentou posteriormente a Faculdade de
Direito de Coimbra, onde, com Alberto de Oliveira, fundou a revista Boémia
Nova,
cuja polémica com a publicação de Insubmissos,
de Eugénio de Castro, constituiu um marco na emergência do Simbolismo e do
Decadentismo em Portugal. Foi em Coimbra que, habitando a fortificação medieval
que ficaria conhecida como "Torre de Anto", se acentuou o culto por uma postura
romântica e egocêntrica, e que elaborou grande número das composições que viriam
a integrar a sua principal obra publicada em vida. Em Paris, desde 1890,
forma-se em Direito na Sorbonne e, conquanto à margem da dinâmica literária
francesa que, por essa altura, consagra o Simbolismo, publicaSó,
em 1892, obra onde a voz do lusíada exilado reinventa, entre nostálgico e
auto-irónico, uma existência que, nutrida nas tradições de um Portugal puro e
preservado, o votou à solidão e ao sofrimento. Não chegando a ocupar o lugar de
cônsul para que concorrera em 1893, os últimos anos de vida de António Nobre
serão marcados por deslocações frequentes entre os lugares da sua infância e
juventude e lugares de repouso, como a Suíça e a Madeira. Uma leitura literal de
um biografismo assumido com emotividade e a evocação de um "Portugal da minha
infância", vislumbrado em paisagens rurais e em textos plasmados sobre formas
populares, permitiu que a publicação de Só surgisse
como um modelo a um tempo de uma estética neorromântica e neogarrettista que,
pelo menos desde o início dos anos 90, fora elaborando as suas propostas
teóricas. Mas, na verdade, o mais original do volume passa por uma forma
antideclamatória que, inserindo-se num dolorismo e confessionalismo lírico,
frequentemente de inspiração autobiográfica, busca a impressão de extrema
simplicidade, delindo na sua elaboração a cultura literária e o rigor
construtivo que lhe subjazem. É neste sentido que António Nobre se insere numa
poesia portuguesa pré-modernista, ao colocar em questão uma língua poética
fortemente convencional e normativa. Segundo Gastão Cruz, "enquanto Cesário
revoluciona fundamentalmente o nível linguístico, através da renovação
vocabular, a revolução de Nobre, não deixando de situar-se igualmente num plano
semântico, e por vezes com uma liberdade de associações e uma violência que
encontram o que encontramos em Cesário [...], abala, pela primeira vez, os
alicerces, e toda a construção, do edifício romântico-parnasiano." (CF. CRUZ,
Gastão - A
Poesia Portuguesa Hoje,
2.ª ed. aum., Lisboa, Relógio d'Água, Lisboa, 1999, pp.
20-21).
No ano de 2000 comemorou-se o centenário da sua morte,
através de publicações que relembram a sua vida pessoal e poética, entre outros
eventos.
António Nobre
A Poezia do Outomno
Noitinha. O sol, qual brigue em chammas,
morre
Nos longes d'agoa... Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poezia escorre
E os bardos, a sonhar, molham a penna!
Ao longe, os rios de agoas prateadas
Por entre os verdes cannaviaes, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!
Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos,
O chale pedem a quem vae passando...
E nos seus leitos nupciaes, os ninhos,
As lavandiscas noivam piando, piando!
O orvalho cae do céu, como um unguento.
Abrem as boccas, aparando-o, os goivos...
E a larangeira, aos repellões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.
E o orvalho cae... E, á falta d'agoa, rega
O val sem fruto, a terra arida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu Sermão de Lagrymas, á Lua!
Tardes de outomno! ó tardes de novena!
Outubro! Mez de Maio, na lareira!
Tardes...
Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!
António Nobre, in 'Só'
Nos longes d'agoa... Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poezia escorre
E os bardos, a sonhar, molham a penna!
Ao longe, os rios de agoas prateadas
Por entre os verdes cannaviaes, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!
Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos,
O chale pedem a quem vae passando...
E nos seus leitos nupciaes, os ninhos,
As lavandiscas noivam piando, piando!
O orvalho cae do céu, como um unguento.
Abrem as boccas, aparando-o, os goivos...
E a larangeira, aos repellões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.
E o orvalho cae... E, á falta d'agoa, rega
O val sem fruto, a terra arida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu Sermão de Lagrymas, á Lua!
Tardes de outomno! ó tardes de novena!
Outubro! Mez de Maio, na lareira!
Tardes...
Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!
António Nobre, in 'Só'