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março 09, 2016

O Guardador de Rebanhos

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PESSOA, Fernando, 1888-1935 O Guardador de Rebanhos / Alberto Caeiro.- [post. Maio 1914].- [39 de 48] p. em 40 f. ; 23,5 x 22 cm

Nota(s): Autógrafo a tinta e a lápis. - Na última página, assinatura de "Alberto Caeiro" e de "Fernando Pessoa" . - Datação baseada nas datas dos rascunhos que precederam a passagem a limpo dos 49 poemas que constituem este ciclo.
BN Esp. E3/145
Um dos documentos mais interessantes do espólio de Fernando Pessoa (1888-1935) é sem dúvida o manuscrito de O Guardador de Rebanhos, autógrafo assinado por Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, um dos heterónimos do poeta. Talvez não seja a mais importante peça do espólio, mas, como diz Ivo Castro no prefácio à edição deste texto, "por servir de sede completa a um dos seus grandes ciclos de poemas, por pôr em causa a versão do próprio Pessoa sobre a génese dos heterónimos, por fornecer amplos meios de corrigir o texto-vulgata do Guardador de Rebanhos, por documentar reveladoramente os métodos de trabalho e de criação textual do poeta e, finalmente, por se ter conservado na obscuridade nos últimos quarenta anos, desconhecido do público e da maioria dos pessoanos, - por esses motivos todos o presente manuscrito [...] merecerá sem dificuldade ser considerado uma das jóias da coroa".
Na verdade, este manuscrito parece à primeira vista confirmar esse "dia triunfal" a que se refere Pessoa na famosa carta a Casais Monteiro (13 de Janeiro de 1935) sobre a génese de O Guardador de Rebanhos e do seu heterónimo Alberto Caeiro:
"Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - 'O Guardador de Rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
O Guardador é um ciclo de 49 poemas, que foi publicado na íntegra pela primeira vez em 1946, no volume intitulado Obras Completas de Fernando Pessoa. III. Poemas de Alberto Caeiro (Lisboa, Ática, 1946). O presente manuscrito inclui estes 49 poemas, escritos no mesmo tipo de papel, com o mesmo tipo de instrumento de escrita e a mesma caligrafia. Esta "unidade de escrita, de local e de tempo de concepção" parecem sugerir que este ciclo de poemas foi escrito de um jacto e "em êxtase". Mas uma leitura atenta do manuscrito permite mostrar que assim não é.
Em primeiro lugar, a letra caligráfica, muito igual e desenhada, não parece ser compatível com uma escrita inspirada e veloz. Em segundo lugar, em vez de um, temos vários instrumentos de escrita: foram utilizadas quatro canetas diferentes no corpo do próprio texto. E, por último, o grande número de emendas, feitas em diversos momentos, e utilizando sete materiais diferentes, desmentem "a suposição de ter o Guardador nascido com o texto em estado definitivo".
A encenação desse "dia triunfal" é ainda desmentida pelas várias dezenas de rascunhos e cópias intermédias conservadas no Espólio da BN. Estes documentos mostram que no processo de escrita do Guardador houve pelo menos três fases distintas: uma fase de rascunhos (versões existentes no espólio), uma fase de passagem a limpo (o presente manuscrito) e uma fase posterior de emendas (presentes neste manuscrito).
Outro aspecto a salientar diz respeito à datação. No final do manuscrito surge a data "1911-1912", com a mesma caneta utilizada na assinatura "Alberto Caeiro". No entanto, alguns poemas estão datados no final a tinta vermelha, a mesma tinta que é usada na assinatura "Fernando Pessoa", que vem a seguir à do heterónimo. Estas datas (entre Março e Maio de 1914) colocadas posteriormente no final dos poemas, parecendo ser as ficcionadas (a primeira que surge é a do famoso "dia triunfal"), são provavelmente as que mais se aproximam da realidade, se tivermos em conta as datas dos rascunhos existentes no espólio, de Março a Maio de 1914, embora algumas não coincidam. E se não coincidem, surge uma nova dúvida: serão também inventadas as datas dos rascunhos? Provavelmente não, mas em Pessoa nem sempre é fácil distinguir ficção de realidade.
O interesse da divulgação deste documento reside ainda no facto de, tendo sido ele a fonte do texto publicado pela Ática (para os poemas não publicados em vida), permitir ao leitor o confronto entre o texto publicado e o original que lhe serviu de base. A Ática optou pela lição inicial e não pela versão final, que é considerada a lição mais autorizada por ter sido a única que o autor não repudiou, embora, na verdade, nunca se possa vir a saber se a repudiaria mais tarde. Mas um texto poético é sempre um texto aberto, e ao editor cabe apenas a obrigação de respeitar a última vontade do autor.
Manuela Vasconcelos